
Em Pequim, sob o fluxo incessante de uma das metrópoles mais movimentadas do mundo, existe um segredo colossal: uma vasta rede de cidades debaixo da terra, projetada para proteger milhões de pessoas de um apocalipse nuclear. Conhecida como Dixia Cheng (地下城), ou “A Cidade Subterrânea”, esta não é uma fantasia de ficção científica, mas um dos projetos de engenharia civil mais ambiciosos e secretos do século XX.
Iniciada no auge da Guerra Fria, esta “Grande Muralha subterrânea” foi construída para funcionar como um refúgio autossuficiente em caso de ataque. Fontes históricas e reportagens investigativas, como as publicadas por veículos como a National Geographic, revelam um complexo que incluía restaurantes, hospitais, escolas e cinemas. A escala do projeto é um testemunho impressionante da mentalidade de uma era definida pela ameaça da aniquilação mútua, uma cidade inteira esperando por uma guerra que nunca veio.
Este artigo leva você a uma jornada por esses túneis esquecidos. Vamos descobrir por que a China mobilizou 300.000 cidadãos para escavar seu subsolo, como essas cidades foram projetadas para garantir a sobrevivência e como, décadas depois, elas ganharam uma nova e inesperada vida, revelando uma faceta surpreendente da sociedade chinesa moderna.
Dixia Cheng: A Fortaleza de 85 km² Contra a Ameaça Nuclear
A ordem para a construção das cidades debaixo da terra veio diretamente do líder chinês Mao Tsé-Tung em 1969. O gatilho foi a escalada das tensões sino-soviéticas, que culminaram em confrontos na fronteira e geraram um medo palpável de uma guerra nuclear. Conforme documentado por historiadores, o projeto foi concebido como a defesa civil definitiva, uma arca subterrânea para proteger a população de Pequim e garantir a continuidade do governo.
A construção da Dixia Cheng, que se estendeu por uma década até 1979, foi uma empreitada monumental. Mais de 300.000 cidadãos, incluindo estudantes, foram mobilizados para cavar a rede de túneis, grande parte do trabalho sendo feito à mão. O complexo se estende por uma área estimada de 85 quilômetros quadrados, de 8 a 18 metros abaixo do centro da cidade. As reivindicações oficiais da época sugeriam que o abrigo poderia acomodar os seis milhões de habitantes de Pequim. Embora estimativas mais realistas apontem para uma capacidade de cerca de 300.000 pessoas, a ambição do projeto era inegável.
Este esforço colossal teve um custo visível na superfície. Para obter materiais de construção, partes das antigas e imponentes muralhas da cidade de Pequim foram demolidas. A intenção era clara: construir uma nova Grande Muralha, desta vez subterrânea, para proteger a nação na era nuclear. Os túneis foram projetados para conectar os principais distritos do governo, marcos icônicos como a Praça Tiananmen e até mesmo bases militares nos arredores da cidade.
Uma Cidade Autossuficiente com Cinemas e Fábricas de Cogumelos
A Dixia Cheng não era apenas um labirinto de túneis; foi projetada para ser uma metrópole funcional e autônoma. O planejamento incluiu toda a infraestrutura necessária para sustentar a vida por meses sem qualquer contato com o mundo exterior. Relatos de quem visitou o local antes de seu fechamento e arquivos históricos descrevem um mundo subterrâneo completo com restaurantes, hospitais, escolas, teatros, barbearias e até uma pista de patinação.
Para garantir a autossuficiência, a cidade subterrânea contava com armazéns de grãos e óleo, poços de água e um elaborado sistema de ventilação com mais de 2.300 dutos que poderiam ser selados para impedir a entrada de gases venenosos ou precipitação radioativa. Uma das adaptações mais engenhosas foi a criação de fazendas de cogumelos e outras culturas que não necessitam de luz solar, garantindo uma fonte de alimento renovável. Grossas comportas de concreto e portões à prova de gás e água foram instalados para proteger os habitantes de ataques bioquímicos.
Dentro desses corredores, a história de um morador de Pequim chamado Wang, que participou da escavação quando era adolescente, ecoa o espírito da época. Ele descreve o trabalho árduo, mas também o senso de propósito comunitário, a crença de que estavam construindo a salvação da cidade. Para ele e para centenas de milhares de outros, cada túnel cavado era um ato de desafio e sobrevivência contra uma ameaça invisível que pairava sobre o mundo.

Da Defesa Nuclear à Moradia Popular: A “Tribo dos Ratos”
A guerra nuclear com a União Soviética nunca aconteceu, e as vastas cidades debaixo da terra nunca cumpriram seu propósito original. Por décadas, a Dixia Cheng permaneceu como uma relíquia silenciosa da Guerra Fria. No início dos anos 2000, uma pequena parte foi aberta ao turismo, mas logo foi fechada novamente. No entanto, com a explosão econômica da China e o aumento vertiginoso dos preços dos imóveis em Pequim, esses antigos abrigos antiaéreos encontraram uma nova e controversa função.
Milhares de trabalhadores migrantes, estudantes e pessoas de baixa renda, incapazes de arcar com os aluguéis da superfície, começaram a se mudar para esses espaços subterrâneos. Apelidados de “Shuzu” ou a “Tribo dos Ratos”, estima-se que em seu auge, até um milhão de pessoas viviam nesses quartos sem janelas, muitas vezes úmidos e com pouca ventilação. Reportagens da Al Jazeera e da National Geographic documentaram as condições de vida precárias, mas também a resiliência de uma comunidade que encontrou um lar acessível onde não havia nenhum.
Essa transformação de um complexo militar de ponta em moradia popular precária é um paradoxo impressionante. Revela as profundas desigualdades sociais que acompanharam o rápido desenvolvimento da China. Embora o governo de Pequim tenha, nos últimos anos, proibido o uso residencial de abrigos antiaéreos por questões de segurança, a saga da “Tribo dos Ratos” marcou um capítulo inesperado na história das cidades subterrâneas da China.
O Legado Subterrâneo: Bunkers Modernos e o Futuro da Defesa
Embora a Dixia Cheng seja hoje uma relíquia histórica, a estratégia de utilizar o subsolo para defesa está longe de ser abandonada. Pelo contrário, ela evoluiu. Análises recentes de imagens de satélite, divulgadas por publicações como o Financial Times e confirmadas por ex-oficiais de inteligência dos EUA, revelam a construção de novos e gigantescos complexos de comando militar subterrâneos nos arredores de Pequim.
Esses novos “bunkers do juízo final” são tecnologicamente muito mais avançados que seus predecessores da Guerra Fria. Projetados para resistir a armas modernas, incluindo mísseis “destruidores de bunkers”, eles são vistos como o futuro centro nevrálgico da liderança militar e política da China em caso de um conflito de grande escala. A escala dessas novas construções, com alguns locais cobrindo áreas dez vezes maiores que o Pentágono, sinaliza que a importância estratégica da defesa subterrânea continua a ser uma prioridade máxima.
De bunkers da Guerra Fria transformados em shoppings em Chongqing a novos centros de comando de alta tecnologia, o legado das cidades debaixo da terra na China é complexo. Ele reflete a história de um país, suas ansiedades passadas, suas realidades sociais presentes e suas ambições futuras, provando que, às vezes, as estruturas mais importantes de uma nação estão escondidas bem debaixo de nossos pés.
As cidades debaixo da terra da China, nascidas do medo da aniquilação nuclear, são um capítulo fascinante da história moderna. A Dixia Cheng de Pequim, com sua vasta rede de túneis e infraestrutura autônoma, revela a escala monumental da preparação da Guerra Fria. No entanto, sua transformação inesperada em moradia para a “Tribo dos Ratos” e a evolução para novos bunkers de comando de alta tecnologia contam uma história ainda mais profunda sobre as mudanças sociais e as prioridades estratégicas da China. Este mundo subterrâneo é um lembrete de que a história tem uma maneira de reinventar até mesmo as estruturas mais singulares.
Perguntas Frequentes
O que é a Dixia Cheng?
A Dixia Cheng, ou Cidade Subterrânea, é uma vasta rede de túneis e abrigos antiaéreos construída sob Pequim, China, entre 1969 e 1979. Foi projetada para proteger a população e o governo de um ataque nuclear durante a Guerra Fria.
Qual era o tamanho da cidade subterrânea de Pequim?
O complexo cobre uma área estimada de 85 quilômetros quadrados e corre de 8 a 18 metros abaixo do centro da cidade. Originalmente, alegava-se que poderia abrigar toda a população de Pequim, que era de cerca de seis milhões na época.
As pessoas realmente viveram nessas cidades debaixo da terra?
Embora nunca tenham sido usadas para seu propósito militar original, nas últimas décadas, os abrigos foram convertidos em moradias de baixo custo para milhares de trabalhadores migrantes e estudantes, que ficaram conhecidos como a “Tribo dos Ratos”.
Ainda é possível visitar a Dixia Cheng?
Não. Após um breve período de abertura ao turismo no início dos anos 2000, a Dixia Cheng foi fechada ao público e permanece inacessível.
A China ainda constrói cidades subterrâneas?
A China continua a investir pesadamente em infraestrutura subterrânea. Análises recentes mostram a construção de novos e avançados centros de comando militar subterrâneos, indicando que a defesa subterrânea continua sendo uma parte crucial de sua estratégia de segurança nacional.