
A Esclerose Múltipla (EM) é uma das doenças mais cruéis do sistema nervoso. Ela age como uma ladra silenciosa, roubando lentamente a mobilidade, o equilíbrio e a qualidade de vida de seus portadores. É uma condição autoimune, onde o próprio sistema de defesa do corpo se volta contra si mesmo, atacando a bainha de mielina, a capa protetora que envolve os nervos. O resultado são “curtos-circuitos” na comunicação entre o cérebro e o corpo, levando a uma variedade de sintomas debilitantes. Por décadas, os tratamentos disponíveis focaram em retardar a progressão da doença, mas a ideia de reverter os danos e recuperar as funções perdidas parecia um sonho distante.
Agora, esse sonho está se tornando uma realidade tangível para um número crescente de pacientes, graças a uma terapia radical e poderosa que está sendo chamada de a maior revolução no tratamento da EM em 30 anos: o transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH). Em ensaios clínicos ao redor do mundo, incluindo estudos promissores conduzidos no Brasil, o tratamento não apenas conseguiu parar a progressão da doença em uma grande porcentagem dos pacientes, mas, em muitos casos, permitiu que eles recuperassem habilidades que haviam perdido, como andar sem ajuda, ter firmeza nas mãos e até mesmo voltar a correr.
O ataque que vem de dentro
Para entender o poder da nova terapia, é preciso entender como a Esclerose Múltipla funciona. Em um corpo saudável, o sistema imunológico é um exército disciplinado que ataca apenas invasores, como vírus e bactérias. Na EM, esse exército se confunde. Células de defesa, como os linfócitos T, perdem a “memória” do que é próprio do corpo e começam a atacar a mielina, a camada isolante dos neurônios. Sem essa capa, os impulsos nervosos se perdem, como um fio elétrico desencapado. Dependendo de onde o ataque ocorre no cérebro ou na medula espinhal, os sintomas podem variar de dormência e fadiga a espasmos musculares, perda de visão e paralisia.
Os medicamentos convencionais para a EM funcionam como “pacificadores”, tentando suprimir ou modular o sistema imunológico para diminuir a frequência e a intensidade dos ataques. Eles são vitais para controlar a doença, mas não consertam o problema fundamental: o sistema imune continua com a “memória” defeituosa, e a doença continua a progredir, mesmo que mais lentamente. A terapia com células-tronco, por outro lado, não tenta pacificar o exército; ela o substitui por um novo.

‘Resetando’ o sistema imunológico
O tratamento com células-tronco é um processo intenso, mas com uma lógica brilhante. O objetivo é, essencialmente, “formatar” e reiniciar o sistema imunológico do paciente para que ele esqueça seu comportamento autoimune. O primeiro passo envolve a coleta das próprias células-tronco do paciente, as células-mãe encontradas na medula óssea que dão origem a todas as outras células do sangue e do sistema imune. Essas células-tronco são filtradas e armazenadas em segurança.
Em seguida, o paciente passa por uma quimioterapia agressiva. Este passo é crucial, pois seu objetivo é destruir completamente o sistema imunológico existente e defeituoso, o exército de células que estava atacando o corpo. Após essa “limpeza”, as células-tronco que foram previamente coletadas são reintroduzidas no corpo do paciente, como sementes em um solo fértil. Sem a memória da doença, essas células-tronco começam a construir um sistema imunológico totalmente novo, do zero, que não reconhece mais a mielina como um inimigo.
Os resultados que estão mudando vidas
Os resultados dos estudos clínicos internacionais são impressionantes e, em muitos casos, emocionantes. Uma grande porcentagem dos pacientes que passaram pelo tratamento, especialmente aqueles com as formas mais agressivas da doença, não apresentaram novos surtos ou progressão da incapacidade por muitos anos. Mas a descoberta mais esperançosa foi a recuperação de funções. Pacientes que estavam confinados a cadeiras de rodas voltaram a andar com o auxílio de muletas ou andadores. Outros, que haviam perdido a firmeza nas mãos, voltaram a escrever ou a segurar um copo sem derramar.
Essa melhora acontece por duas razões. Primeiro, ao parar os ataques constantes, o corpo finalmente tem a chance de reparar parte do dano já existente na mielina, um processo natural que antes era interrompido pela inflamação crônica. Segundo, o cérebro possui uma capacidade incrível de se adaptar, a neuroplasticidade. Com a doença “desligada”, a fisioterapia e a reabilitação se tornam muito mais eficazes, pois o cérebro consegue criar novas vias neurais para contornar as áreas danificadas.
Quem pode se beneficiar e qual o futuro?
É importante notar que o transplante de células-tronco não é para todos os pacientes com Esclerose Múltipla. É um procedimento de alta intensidade, com riscos significativos associados à quimioterapia. Atualmente, ele é considerado a melhor opção para pacientes com as formas remitentes-recorrentes da doença, que são mais jovens, têm um alto grau de inflamação e não responderam bem aos tratamentos convencionais. A decisão de seguir com a terapia é complexa e deve ser tomada em conjunto com uma equipe médica especializada.
No entanto, o sucesso retumbante da terapia está impulsionando a pesquisa para torná-la mais segura e acessível. Cientistas estão buscando regimes de quimioterapia menos tóxicos e formas mais eficazes de preparar os pacientes. A esperança é que, no futuro, uma versão mais branda e segura deste “reset” imunológico possa ser oferecida a um número muito maior de pacientes e em estágios mais iniciais da doença.
Uma nova era de esperança para a Esclerose Múltipla
O tratamento com células-tronco representa a mudança mais significativa na luta contra a Esclerose Múltipla desde a descoberta dos primeiros medicamentos. Ele mudou o objetivo do tratamento, de apenas controlar os sintomas para a possibilidade real de parar a doença e recuperar a vida. Para milhares de pessoas no Brasil e no mundo, que vivem com a incerteza e a degeneração da EM, esta terapia não é apenas um avanço científico; é a materialização da esperança, a promessa de que é possível não apenas viver com a doença, mas talvez, um dia, superá-la.